A notícia veio um pouco antes do Natal. Uma mensagem no celular pedindo uma reunião urgente. Eu não tinha como ir no horário proposto. Pedi para me adiantar o assunto por e-mail e se não poderíamos resolver, o que quer que fosse, depois das Festas. Não dava. Marquei as entregas da tarde, deixei Amora com minha mãe e fui para a Galeria.
Fui encaminhada para sala de reunião por uma jovem que se parecia comigo, dez anos atrás. Sempre estranhei as cadeiras tão grandes, a mesa longuíssima. Nem imaginava que lugares como aqueles ainda existiam. Ainda existia espaço para uma sala de reunião tão grande? Ainda havia reuniões presenciais, que usassem todas aquelas cadeiras?
O meu copo de água suava e escorria pelo porta copo de couro. Tudo ali era um misto de brega com opressivo. Sala sem janelas, ainda que decorada com quadros de paisagens, impressos, não eram originais. Um giro da maçaneta e meus olhos foram direto para a porta.
- Camila, alguns dias atrás recebemos uma ligação da matriz.
Eu não respondi a essa pausa. Continuei olhando para o homem, uns dez anos mais velho que eu, com um topete feito com gel. Usava um pulôver bordado, sobre o peito o emblema do centro comercial onde eu alugava uma das lojas. Ele tinha olhos claros e usava um molho de chaves preso ao cinto, o que eu achava ao mesmo tempo útil e brega.
- A unidade que você ocupa vai ser alugada para outra loja.
20 de dezembro. Cinco dias antes do Natal. Eu ainda estava tentando vender as últimas peças antes que aquela galeria ficasse vazia.
Esse seria o último final de semana com movimento nas ruas. Semana que vem, finalmente, as pessoas ficariam em casa para festejar com suas famílias. Esse era meu plano, inclusive, fechar a loja até a primeira semana do ano novo, viajar para o interior com Amora e mamãe.
- Como você sabe, seu contrato é renovado mês-a-mês…
- Eu estou ciente da fragilidade do meu contrato, Carlos. O que eu não entendo é por que essa mudança não pode acontecer em Janeiro?
- Pois o novo inquilino vai pagar o aluguel inteiro e a Matriz está interessada nisso, naturalmente.
- E como eu fico?
- Bom, sua unidade traz muito movimento, nós sabemos, por isso internamente agilizamos para que uma unidade no piso superior pudesse ser liberada para você.
- Eu posso conhecer antes? Quanto tempo poderei ficar lá? Será o mesmo contrato?
- Pelo menos um ano, a unidade está fechada faz uns anos…
Eu sabia qual das unidades seria, já tinha corrido com Amora, quando ela aprendeu a andar, pelos corredores do piso superior. Era mais calmo, o parapeito era bem fechado, grades de ferro com design art-deco. A Galeria tinha sido construída nos anos 1920, foi sendo reformada e minimamente alterada desde então. Era um charme, meu charme. 50 anos atrás meu avô tinha trabalhado em uma das lojas, e lá se aposentou. Eu conhecia aquela Galeria de baixo para cima e de cima para baixo. Sabia exatamente de qual unidade Carlos estava falando, e eu não gostei.
Os dias seguintes foram comunicando minhas vendedoras e costureiras das mudanças. Buscando caixas com amigos e familiares, longas horas na loja empacotando o estoque, jogando algumas coisas fora, revivendo tudo que passamos desde que abrimos pela primeira vez, três anos antes.
Quando tudo estava empacotado, lá pelo dia 24 de dezembro, meio da tarde, fomos todas embora. As meninas estariam de férias coletivas até a primeira semana de Janeiro. Logo depois do Natal, dia 26 para ser mais exata, houve a troca das chaves. Eu teria dois dias para limpar a loja nova e fazer a mudança.
Eu varri tanto, tanto, tanto aquele dia. Eu varri os cantos, as paredes, as frestas. Tirei o pó de cima das prateleiras, do topo das portas. Joguei muito entulho fora, arranquei papéis de parede antigos, tentei tirar as marcas de fita adesiva do vidro da frente. De quantas outras vidas eu estava varrendo a poeira? O que já tinha acontecido ali e do que aquela poeira foi testemunha, ao mesmo tempo que foi gerada?
Dia seguinte, carregamos - mãe e eu - as caixas da loja 13 para a loja 23, escada acima. Amora estava no chiqueirinho na loja nova. Disse assim para ela:
- Filha, você é a fiscal da porta, ninguém pode entrar, somente a mamãe e a vovó. Tá bom?
Não sei o que minha filha do alto dos seus 2 anos e meio tinha entendido da tarefa, mas ela ficou bem lá, brincando com os seus bichinhos, sem nem um pio. A loja 23 era no segundo andar, para o lado direito, no final do corredor. A última porta. As outras duas lojas anteriores, eram escritórios que não recebiam tanta gente assim, e a loja em frente estava também desativada.
Era difícil ser a última loja do segundo andar. Poucos curiosos andavam até lá. Se fosse um café ou alguma loja de conveniência, teria mais chances de ser o propósito da visita das pessoas. Mas eu não era a dona de nenhum desses negócios. Eu trabalhava com a efemeridade, compras ocasionais, presentes. Ainda assim, os cursos e oficinas traziam pessoas novas todos os meses para o ateliê.
Não era bem raiva o que eu estava sentindo por perder o meu espaço, meu casulo, meu lugar seguro numa cidade tão grande. Era nostalgia, saudade, impotência. Era a constatação que o respeito pela memória de alguém não é, e nunca foi mesmo, garantia de estabilidade. Foram abertas muitas exceções para minha loja estar em um lugar caro, ainda que levemente decadente.
A própria Galeria competia com espaços mais bonitos, mais modernos, mais seguros e com mais infraestrutura, como banheiros públicos, ar condicionado e, naturalmente, elevador. Ali, trabalhamos no século XXI, com demandas do século XXI, num espaço e estrutura planejada para o século XX. Esse era o charme e a principal razão para eu amar aquele amontoado de lojas sobrevivendo. Ao mesmo tempo, me perguntava o que atraiu, no novo inquilino, o meu pequeno espacinho no térreo, bem na frente, a segunda loja da galeria. Cuja fachada tinha sido alterada pouquíssimo nos últimos 90 anos.
Eu pintei o rodapé de verde quando nos mudamos e minha mãe usou stencils de flores para acrescentar textura a ele. Limpei os vidros da vitrine com jornal, como nos velhos tempos, troquei as luzes de LED por antigas lâmpadas, menos eficientes porém mais charmosas. Lá fiz meu segundo lar por dois anos e meio. Empreguei pessoas, realizei sonhos, promovi pessoas, demiti pessoas, fiz vendas grandes e pequenas. O que poderia ser uma metáfora ótima para crescimento - mudar para o andar de cima - para mim parecia um declínio. Apesar de ser positiva, pensando que o novo espaço estava em melhores condições hoje, do que quando entrei pela primeira vez no número 13, senti uma tristeza de ter sido forçada a mudar, empacotar com meus produtos e mobília, minha rotina, meus planos e meu conforto.
Sentada sozinha no sofá de casa, bem tarde da noite, olhava para a mochila que iria me acompanhar para o sítio na manhã seguinte. Como iria descansar, sabendo que dali dois dias a maratona iria recomeçar? Pior, que não precisaria ser assim. Mas era. Eu não tinha como superar a oferta e pagar mais. Principalmente, eu não queria. Pelo que nos era oferecido, já estava até caro demais. Estava resumida, na minha mudança forçada, toda a mudança e o desenvolvimento de uma cidade.
Jogar para o andar de cima uma loja mais antiga, menor e que não vende exatamente produtos essenciais (são essenciais para meus clientes, mas enfim) e abrir espaço (caro) para lojas novas, dispostas a pagar para estar em um lugar que não vale isso.
Dormi no sofá aquela noite. Se era para me privar da normalidade, iria fazer isso em todas as esferas da vida. Minha rotina estava toda bagunçada mesmo.
Mochila no ombro, chaves do carro na mão. Teria economizado 30 minutos de trânsito se não tivesse passado pela Galeria. Estava fechada, mas eu tinha as chaves. Abri o portão e o fechei imediatamente atrás de mim. Dei poucos passos até minha antiga loja, tinha luz lá dentro. Parei bem na frente, a pintura verde e as lâmpadas incandescentes ainda estavam lá. Mas o vidro havia sido coberto, dava para ouvir movimento, mas não ver o movimento.
Minha curiosidade deveria esperar até Janeiro no final das contas.
Você também já se perguntou a poeira de quem está varrendo, enquanto está varrendo?
SE CONSELHO FOSSE BOM…
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Devido a esse inverno cinza do país que moro, algumas plantinhas não sobreviveram à mudança de vasos que fiz em Janeiro. Por isso procurei alternativas artesanais de verdejar minha casa e meu trabalho. Achei esse tutorial de origami aqui bem fofo e nem tão complexo, recomendo se você procura por uma meditação ativa e plantinhas a seu redor num ambiente sem Sol:
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Ainda no tema plantas, assisti no Globo Play a edição especial de 45 anos do Globo Rural. Gente, arte em forma de reportagem, sério, assistam! Tem êxodo, tem respeito às estações do ano, tem modo de vida tradicional, tem equilíbrio entre os seres humanos com a natureza”. Afinal, somos parte da Natureza né? E principalmente, agora as florzinhas "Sempre-Vivas” tem um novo significado para mim <3
“Centenas de famílias vivem em constante mudança na Cordilheira do Espinhaço, em Minas Gerais. Um modo de existência que foi reconhecido pela ONU como patrimônio agrícola mundial”. Assista no Globo Play.
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